Por Pe. Gottardo,SJ
“San Torpete, paróquia no coração de Gênova, não celebrará o Natal de 2018”. A declaração é do pároco, Pe. Paolo Farinella. Desde 2005, aquela igreja foi confiada a ele com a missão de torná-la um “centro cultural” e uma referência de hospitalidade aos migrantes que fogem da fome, da perseguição e das guerras. (A presente reflexão são recortes – com livres adaptações – do texto publicado no site: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/585310.
No entanto, “de tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus…” (Rui Barbosa) no mundo e, particularmente, na Itália, o pároco resolveu radicalizar: Não haverá celebração do Natal em 2018. Decisão impactante e triste. Mais. Aproveita o ensejo e faz afirmações duras, ousadas e cortantes sobre o modo como estamos celebrando as festas “cristãs”. São palavras cáusticas, mas não inoportunas.
Com profunda tristeza reconhece que o Natal não é mais o Natal cristão: não é mais “memória” do nascimento de Jesus, mas um cínico fato comercial, misturado com ritos e liturgias repetitivos, “mercadorias à venda” no pagão “espírito de Natal”, sequestrado pelo mercado neocapitalista. O “mistério do Deus que vem” se reduz a uma religião civil e pagã, circunstância da qual Jesus Cristo, em muitos ambientes e famílias, é excluído e expulso.
Muitos católicos, de fato, não acreditam que o Natal seja a consciência da “proximidade de Deus” para construir uma nova humanidade onde triunfe o direito e a justiça. Eles se contentam, culpavelmente, com a fabulazinha inócua do presépio, que, entre animais, artesanatos, luzes, bonecos e engenhocas de engenharia hidráulica, faz do “mistério fundamental da fé cristã”, a Encarnação do Filho de Deus, um instrumento de alienação em benefício de crianças e adultos infantis, que, embora batizados, só entram em uma igreja nessa ocasião. Turistas do religioso folclórico. Que vergonha!
Denuncia que os cristãos são cúmplices da degradação do Natal, porque a memória do nascimento de Jesus não tem nada a ver com o Natal que, via de regra, celebramos. Vê uma contradição absurda e condenável: o Natal é transformado em saga camponesa de montanhas de presentes e presépios, enquanto que “os pobres Cristos” morrem de fome e de frio, e os “Herodes” se divertem e banqueteiam-se nas orgias do consumo e nas frívolas vaidades.
Quanto cinismo! E quanto desperdício acontece! Quanta comida é jogada fora, enquanto, nas mesmas ruas, “Jesus, o migrante dos migrantes”, morre à míngua e na humilhação ao som do canto Tu scendi dalle stelle al freddo e al gelo (“Tu desces das estrelas ao frio e ao gelo”). Da boca de Simeão aprendemos: “Este menino será um sinal de contradição” (cf. Lc 2,34). E por que em muitos ambientes a festa de Natal se tornou uma pasmaceira!? Dá o que pensar.
Ao analisar os decretos e as leis bem elaboras e justificadas com sofisticação pelos “Herodes” de plantão, o indignado Farinella afirma que por trás das palavras bombásticas, confusas e imorais das leis (“xenófobas”, “elitistas” e “excludentes”) esconde-se a vontade descarada de atacar “os migrantes”, justamente às vésperas do nascimento de Jesus, migrante perseguido por excelência que teve de fugir para o Egito para não ser aniquilado pelos podres poderes deste mundo. Onde estão os cristãos!?
Com que direito tantos batizados podem pretender celebrar o Natal de Jesus num ambiente (país) que, sem esboçar qualquer resistência, expulsa pessoas, muitas vezes, em nome de Deus? Como é possível abrir as igrejas e se entreter com canções de ninar, “Tu scendi dalle stelle”, cantos gregorianos, presépios infames, quando, do lado de fora, o verdadeiro Cristo é ofendido, torturado, vilipendiado, vendido, esbofeteado e morto, como o “Homem das Dores” do profeta Isaías? (cf. Is 53).
Só nos resta assumir o único gesto de dignidade que sobrou: a nossa consciência oposta como bastião de objeção total com ato público, radical, disruptivo e inequívoco: a Igreja de San Torpete em Gênova ficará fechada, porque um Natal sem Cristo, um Natal sem Deus é um Natal sem Homem.
Que a igreja fechada à celebração do Príncipe da Paz e aos pobres possa estimular o pensamento crítico, a reflexão dos fiéis e daqueles que têm consciência de que o Natal é “Deus-conosco-Emmanuel”. Profético!