Por Pe. Roberto Jerônimo Gottardo,SJ (Pároco)
“Todo aquele que pretender combater por Deus, sob a bandeira da cruz, na nossa Companhia, que desejamos se assinale com o nome de Jesus, e servir somente ao Senhor e à Sua esposa a Igreja, sob a direção do Romano Pontífice, Vigário de Cristo…” (Fórmula do Instituto, 1550), “para o proveito das almas e propagação da fé” (Nossa Vida de Jesuítas, 3).
I. Precisamente no dia 29 de março de 2019, os Jesuítas do Brasil celebraram os 470 anos do desembarque dos primeiros companheiros de Jesus no País. Uma data importante para ser lembrada e celebrada com júbilo e alegria, como também de reconhecimento das tantas vicissitudes históricas e das inúmeras limitações pessoais e institucionais. Sabemos da importância da Companhia de Jesus na “confecção” da identidade do povo brasileiro bem como o espírito plasmado pelo testemunho de valorosos homens de Igreja que não medirem esforços para semear o evangelho de Jesus aos lugares/missões a eles confiadas pelos Superiores.
A Companhia de Jesus, desde seus primórdios, atua nos mais diversos campos das atividades humanas: na educação, nas missões, na espiritualidade, nas ciências, nas pesquisas, na pastoral direta, etc., sempre “sob a bandeira da cruz”. Com esta motivação teológica e eclesial os jesuítas atravessam as fronteiras geográficas e culturais, indo para ambientes indesejados por muitos e até hostis à fé cristã, em atitude de obediência e procurando em tudo fazer a vontade de Deus. “A nossa Companhia foi fundada principalmente para a defesa e propagação da fé, e para prestar todo o serviço na Igreja que seja para glória de Deus e bem comum… Um jesuíta, por consequência, é essencialmente um homem a braços com uma missão” (cf. Nossa Vida de Jesuítas, p. 141). Quantas vezes “companheiros e amigos no Senhor” reeditaram em suas vidas as dramáticas experiências de Jesus: a rejeição em Nazaré (cf. Mc 6,1-5), o estar entre lobos (cf. Mt 10,16), o ser conduzido aos iníquos tribunais (cf. Mt 10,17), o estar entre debilóides (cf. Lc 7,31-32), o ser traído e condenado (cf. Mc 14,44.64), o ser martirizado (cf. Lc 23,33-34) por causa do amor e do nome de Jesus!
Ao longo desses 470 anos de trabalho missionário no Brasil, os jesuítas passaram por todo o tipo de infortúnio, mas nunca se deixaram abater pelas fadigas inerentes à missão. Mesmo perseguidos e expulsos (supressão em 1773), aprenderam que nada deviam temer, pois a vida não mais lhes pertencia e Deus estava com eles. “Se Deus é por nós, quem será contra nós? Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? Realmente, está escrito: Por amor de ti somos entregues à morte o dia inteiro; somos tratados como gado destinado ao matadouro” (cf. Rom 8,31.35-36). Isto significa, concretamente, militar sob a bandeira da cruz. É verdade, a luta pela implantação do Reino de Deus é feroz e inglória, particularmente, onde reina a ideologia do mundanismo e das tantas idolatrias. Mas “ai de mim/nós, se não anunciar o evangelho!” (cf. 1Cor 9,16).
O trabalho missionário da Companhia de Jesus foi e continua sendo bastante significativo para o Brasil. Mas é imperioso reconhecer: estamos em tempo de crise e o Corpo da Companhia sente o cansaço. Isto se reflete nas minguadas vocações e na presença sempre menos vistosa de jesuítas em muitas obras. As forças arrefecem e os desafios se avultam no horizonte. Não é tempo de ufanismos pueris nem de cultivar doces ilusões. É tempo, sim, de esperança viva, de testemunho profético dos valores do Reino, de rezar e implorar do Senhor da messe que envie boas e generosas vocações (cf. Mt 9,38). Não obstante, sermos obrigados pelas circunstâncias a repensarmos e até a renunciarmos a algumas obras importantes, os filhos da Companhia de Jesus não fogem da luta, e tudo fazem para que a maior gloria de Deus apareça. Sabem que “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” (F. Pessoa); sabem também que para ressuscitarem na memória de um povo, às vezes, faz-se imperativo retirar-se, silenciar e morrer. No entanto, a “colheita”, ou seja, a justiça é uma prerrogativa exclusiva de Deus (cf. Mt 25,31-46).
II. Precisamente, no dia 3 de outubro de 2019, a Paróquia São Virgílio celebrou 90 anos de história e os 140 anos de presença dos jesuítas no município de Nova Trento – SC. De alguma forma a história de Nova Trento se confunde com a presença e atuação ininterrupta dos jesuítas desde quando aí aportaram as primeiras levas de famílias de imigrantes oriundos da Itália, da Alemanha e da Polônia. Muitas gerações de neotrentinos foram iniciados no universo da tradição cristã graças ao trabalho incansável de tantos jesuítas que lançaram as sementes do evangelho, que, malgrado a absoluta precariedade dos meios de locomoção e de logística e se deparando com os vários tipos de terreno como descreve o evangelho (cf. Mt 13,18-23), foram fiéis ao mandato de Cristo (cf. Mc 16,15) e aos desejos de Santo Inácio de Loyola: “Ninguém sabe o que Deus faria de nós, se não opuséssemos tantos obstáculos à sua graça”.
Em atitude de contínuo discernimento apostólico desde os inícios (1540) os jesuítas se notabilizaram por serem capazes de identificar as necessidades de adaptação em suas diferentes missões. Sempre coube aos jesuítas, servidores da missão de Cristo, oferecer ao mundo ‘tudo o que Igreja é e tudo o que ela crê’. Por isso, reinventar-se para ser fiel à missão confiada sempre foi um estímulo. A ideia do “sempre foi assim” e do imobilismo medíocre vai na contramão do espirito inaciano. As tentações da zona de conforto, às vezes, são irresistíveis, ainda mais quando açoitados pela cultura do secularismo, das comodidades e da vida fácil. “Escolhi chamar de ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza” (Z. Baumman). Por vezes, a Companhia teve que tomar decisões difíceis como término e alterações de diversos trabalhos, não por desânimo, mas por julgar que a contribuição da Companhia àquele lugar/obra foi dada a contento à Igreja particular e/ou que a obra perdeu a pertinência. Nos últimos 50 anos não foram poucas as paróquias/obras que a Companhia “passou adiante”, como também não foram poucas as pessoas que os jesuítas encontraram e inspiraram ao longo do percurso desses 140 anos de presença na terra da Irmã Paulina. Resta-nos agradecer. A gratidão santifica todas as coisas.
Entretanto, após 140 anos de atuação apostólica em Nova Trento é chegada a hora de partir. Com liberdade interior e desapego de tudo e de todos é preciso estar em sintonia com o evangelho e vivê-lo com disponibilidade: “Naquele mesmo dia, ao cair da tarde, pediu aos seus discípulos: ‘Passemos para a outra margem’” (cf. Mc 4,35). Não é fácil! Seguimos adiante com a consciência de que a vida inteira é um processo de depuração, de conversão e de ação de graças. A memória agradecida é o húmus natural de onde brota a gratidão às pessoas e reverência à vida e à pastoral. Só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e encorajar atitudes cujo horizonte se apresenta o “em tudo amar e servir”. Doravante, com o coração agradecido vamos levar e fazer memória de tantos dons e bens recebidos, e vamos deixar brotar naturalmente do nosso interior, o desejo de uma resposta generosa e ainda mais radical a Deus que é a fonte e a origem de todas as bênçãos. A vocação é dom de Deus para ser partilhada e compartilhada com o povo de Deus, com responsabilidade e discernimento.
III. “Que coisa melhor podemos trazer no coração, pronunciar com a boca, escrever, que estas palavras: graças a Deus! Não há nada que se possa dizer com maior brevidade, nem ouvir com mais alegria, nem sentir-se com maior elevação, nem fazer com maior utilidade” (Santo Agostinho). A Igreja é de Deus; nós, Jesuítas, meros e modestos servidores da missão de Cristo. Sentimos muito as dores e as angústias das nossas inúmeras limitações, mas o nosso coração também palpita pelas maravilhas que Deus realizou em nós e através de nós na boa companhia e no envolvimento de tanta gente boa na missão evangelizadora em Nova Trento. “Se não houver frutos, valeu a beleza das flores; se não houver flores, valeu a sombra das folhas; se não houver folhas, valeu a intenção da semente” (Henfil). Um eterno “obrigado” diremos aos amigos/as, benfeitores/as, colaboradores/as que, dia e noite pelejaram conosco na missão de fazer o Reino de Deus acontecer e aparecer, por estas terras. Nossa imensa gratidão também à Arquidiocese de Florianópolis, na pessoa dos Senhores Bispos, que sempre demonstrou amor, proximidade e caloroso afeto aos Jesuítas que por aqui passaram e serviram. Te Deum laudamus.
Sabemos por experiência que “toda separação/partida é triste. Ela guarda memória de tempos felizes (ou de tempos que poderiam ter sido felizes…) e nela mora a saudade” (Rubem Alves). Que bom, se ao partir, deixamos saudades e belas recordações no coração e na mente das pessoas! “Nada te perturbe, nada te espante, tudo passa! Só Deus não passa… Quem a Deus tem, nada lhe falta, pois só Deus basta” (Santa Tereza D’Ávila). Sob os auspícios della Madonna del Buon Soccorso, de Santa Paulina e todos os santos e santas padroeiros das capelas da Paróquia de São Virgílio, que venham bons e saborosos frutos na terra lavrada pelos filhos de Santo Inácio. Na memória vão lembranças… “Aquilo que a memória ama permanece eterno” (Adélia Prado). Ad maiorem Dei gloriam.