Por Pe. Gottardo,SJ
“O Espírito Santo é capaz de criar em mim o que não existe e destruir o que parece indestrutível” (Urs Von Balthasar).
“Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar” (cf. At 2,1). “… os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por medo dos judeus” (cf. Jo 20,19c). As duas frases traduzem de modo emblemático a vida interior dos discípulos após a Ascensão do Senhor e antes do dia de Pentecostes. Jaziam no túmulo da desolação e do pavor.
Efetivamente, depois da morte de Jesus os discípulos estavam atordoados, desiludidos e com medo dos judeus. Raciocinavam: “se perseguiram e mataram Jesus, que nos aguarda?!”. Encontravam-se, encastelados, no cenáculo. O cenáculo representa o útero materno, o estar envoltos, protegidos; ali imaginavam estar seguros, escondidos; porém, assim procedendo não anunciam coisíssima nenhuma. Ao ficarem reclusos e paralisados por causa do medo tornaram-se reféns da descrença. E o evangelho?
Para os apóstolos, Pentecostes foi uma experiência de crise profunda, de decisão, de redefinição dos rumos da própria vida. Foi, na verdade um tsunami, um furacão com efeitos devastadores. Alguns se interrogavam: “Por que fomos confiar naquele homem que agora jaz na tumba?”. Outros afirmavam: “É verdade, porém, o sentimos vivo dentro de nós”. Bater em retirada ou ir até as últimas consequências? Que fazer? Permanecer escondidos no bunker (cenáculo), ou ousar sair com todos os riscos imagináveis? O Espírito quer fazer novas todas as coisas (cf. Ap 21,5).
Que ninguém se engane porque “nascer de novo” (cf. Jo 3,3) é custoso, não é mera fantasia. Nenhuma experiência espiritual acontece sem uma sincera disposição para converter-se ao Evangelho. Porque o Espírito Santo destrói as nossas casas (cenáculos), fustiga os nossos refúgios mentais, esvazia as nossas certezas, e põe fogo nos nossos ninhos quentes e confortáveis, etc. Por isso a sacudida de pentecostes produz crise que desmonta os nossos esconderijos; obrigam-nos a sair dos nossos cenáculos e nos constringe a pormos perguntas inéditas. Não será por causa disso que muita gente, pateticamente, põe o Espírito na gaiola, para se viver uma religião de fachada?!
A irrupção do Espírito na vida/comunidade é algo absolutamente novo e é sempre precedido por profunda crise que desestabiliza as estruturas. Não há parto sem dor nem mudança sem rupturas. A crise é um momento sob o qual se decide se se deve continuar, modificar e/ou terminar uma história, uma relação. O Espírito nos impele a ressignificar a vida e a reinventarmo-nos. Faz-nos transcender e a romper com as famigeradas zonas de conforto. O Espírito é o fogo de Deus que faz arder o coração (cf. Lc 24,32). Não é coisa fácil porque a tentação da acomodação é real e o fazer coisas no automático (“sempre foi assim”) é a morte do espírito.
A crise é um conflito entre duas tendências. Uma diz: “O seguro morreu de velho”, “é perigoso”; enquanto que a outra sussurra: “É preciso mudar mesmo que seja doloroso. Tudo flui”. “Loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo exatamente igual” (A. Einstein). Se a criança não passa pela terrível crise do ser expulsa do céu, ou seja, do ventre materno através do parto ela morre. Portanto, não há alternativa: mudar (nascer ‘no Espírito’) é doloroso, não mudar é fatal.
Muitas pessoas quais tagarelas falam do Espírito; porém, sequer tem ideia do que estão falando. Quer-se o espírito, mas não as mudanças e as crises que Ele causa; isto significa na prática negar o Espírito! O teólogo, L. Boff, ensina que crise, em sânscrito, vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento com o qual limpamos ouro das gangas e acrisolar quer dizer depurar e decantar. Então, a crise representa um processo crítico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece.
Não podemos crescer sem atravessar o vale das lágrimas (crises) e os desertos da vida. A crise apresenta inúmeras facetas: os anos que passam; a passagem da adolescência; o fim da juventude, a imersão no mundo dos adultos; a morte de uma pessoa que amamos; pessoas que se afastam de nós por besteiras; a perda de bens, do trabalho. Na verdade, enquanto peregrinos neste mundo, estamos sempre imersos em crises.
Há também as crises mentais psicológicas: os conceitos religiosos exigem ser alargados; as falsas ideias sobre Deus; as convicções sem consistência. Há também as crises afetivas: o nosso modo de amar não satisfaz, requer nova abordagem; medos (fantasmas) que eclodem do profundo, bloqueios e monstros que ignorávamos; damo-nos conta de não sermos livres. Toda crise via de regra é um parto a fórceps, um conflito; mas nos amadurece e nos faz mais fortes.
Nietzsche costumava dizer: “Aquilo que não me mata me torna mais forte”. A crise é o momento da descida do espírito, na qual nos purificamos para que a Vida se torne mais transparente, verdadeira, madura, livre e leve. Quem foge da crise permanece no mundo infantil e na insuportável mesmice. A crise é o modo com o qual Deus nos modela e nos plasma, nos forja e nos torna como Ele deseja. O Espírito Santo é Divino pedagogo que nos habita e vai nos burilando até atingirmos, um dia, quiçá, a estatura de Cristo (cf. Ef 4,13).
Viver segundo o Espírito implica em reconhecer a verdade fundamental de que Deus habita em nós. É verdade, Deus não está mais presente fisicamente no meio de nós, mas está presente com seu Espírito, alma da Igreja e – se o permitimos -, o doce hóspede de nossa alma. “Ó Espírito Santo, que habitais em nós, tornai-nos templos de vossa glória”. Amém.