“Pecado é professar com os lábios e negar com as atitudes, ou seja, não deixar Deus agir em nós, porque é Ele que vem ao nosso encontro” (Dom Anuar Battisti).
Segundo o evangelista Marcos, o primeiro milagre do desconhecido rabino ocorre em Cafarnaum, no interior da sinagoga (cf. 1,23-26). Jesus pratica um exorcismo, ou seja, expulsa o espírito impuro de um homem. O Inimigo estrebucha diante do poder das palavras de Jesus, ensinamento novo. Ele não suporta ser questionado nem desmascarado. Esconde-se nas brechas dos podres poderes e via de regra se encontra sempre muito bem instalado, tem nome e endereço certos. Não é uma abstração.
Ninguém tinha consciência de estar possuído por um espírito imundo. Como as aparências enganam! Às vezes, nos defrontamos com determinados ambientes eclesiais povoados de demônios e sequer damo-nos conta, tamanha nossa alienação. Muitos aparentam serem religiosos/as (“santo”), mas estão endemoniados. Numa determinada ocasião, um mestre disse aos discípulos: “Estão vendo aquele homem? Ele vem ao templo todos os dias, de manhã e à noite, reza por cerca de uma hora e sempre faz oferta. Que podemos dizer sobre ele?”. Os discípulos, responderam: “É um exemplo para todos nós; é um homem de Deus”. E o mestre: “Nós não podemos dizer nada, porque não conhecemos coração dele”.
Sentindo-se profundamente perturbado com as palavras luminosas de Jesus o “espírito imundo” reagiu com inopinada violência. O homem possuído diz: “O que queres com a gente? Vieste para nos destruir?” (Mc 1,24). Porque falou no plural? O homem, claro, fala em nome de uma categoria, de uma corporação: “Eu falo em nome de todos”. E por que estrebucha tanto? Por que sente tanto ódio contra a pessoa de Jesus? Afinal Jesus não havia feito nada que incomodasse. Estava “apenas” pregando o Evangelho! Pôs iodo na ferida. Marcos lembra que a assembléia reunida naquela sinagoga reconhecia a originalidade de Jesus: “Agora sim temos alguém que vem de Deus, e não como os escribas (os profissionais da religião)”. Jesus ensinava com autoridade.
Na psicologia do endemoniado, a princípio, todos são inimigos em potencial. Está sempre à espreita. O pintor Francisco Goya, dizia: “O sono da razão produz monstros”. Sobre a ação diabólica Sto Agostinho escreveu palavras interessantes: “O demônio não influência nem seduz ninguém se não encontra terreno propício. Quando o homem ambiciona uma coisa; sua concupiscência legítima as sugestões do demônio. Quando um homem teme algo, o medo abre uma brecha em sua alma pela qual se infiltram suas insinuações. Por essas duas portas, a concupiscência e o medo, o demônio se apodera do homem” e causa estragos irreparáveis.
Entretanto, é preciso fare attenzione com as inúmeras expressões de fé da atualidade, “tempo de muitas crenças e de pouca libertação” (Pe. Libânio). À luz do evangelho podemos afirmar sem medo de errar que a fé que mantém o Senhor distante da vida cotidiana, relegando-o ao sagrado (templo) é demoníaca, como também demoníaca é a fé que se “emociona” com as celebrações/exortações piedosas, mas não permite que Deus interfira e transforme a realidade quotidiana nem que a fé se transforme em solidariedade com os mais pobres.
É igualmente demoníaca a fé que vê Deus como um concorrente e que o contrapõe à vida e à fé, como uma espécie de desmancha prazeres: “Se Deus existe, não sou livre nem posso ser feliz”, ou seja, não posso realizar meus desejos. Os filósofos são pródigos em asserções do gênero: “Se não há Deus, tudo é permitido”, escreveu Dostoievski. O filósofo francês ateu Michel Onfrey disse: “Se Deus existe, eu não sou livre; por outro lado, se Deus não existe, posso me libertar”. Tudo vaidade!
É demoníaca também uma fé que permanece nas palavras e nas boas intenções: o demônio reconhece Jesus como o Santo de Deus, mas não adere ao evangelho. Aqui está o pecado mortal. É fácil professar a fé, o complicado é deixar essa fé transformar os nossos sentidos e o nosso pensar. Diz-nos Dom Anuar: “O demônio reconhece Jesus, professa a fé Nele, mas não O segue e continua sempre pela própria estrada”. Conhece a Bíblia como ninguém (vomita versículos qual metralha) e ostenta soberbo conhecimento de teologia, mas não pratica Palavra; apenas a instrumentaliza. Libertar-se da fé mesquinha, oportunista e medíocre é uma tarefa irrenunciável.
O maior trunfo do Inimigo é que acreditemos que ele não existe. Que ninguém se iluda, porém: “O demônio existe e não tenho dúvidas de que ele nunca para de trabalhar, principalmente, fazendo-nos professar a fé e vivendo como se Deus não existisse. Orar sempre, professar sempre, viver sempre na luz da Fé, assim nada será inútil. A vida terá outro sentido” (Dom Anuar Battisti). O Encardido é extremamente inteligente e camaleônico; suas táticas e estratégias são incríveis (finge-se de anjo); a batalha contra ele é ferrenha e diuturna. Tem sorriso farto e fácil, mas não tem amigos. É dissimulado. Diz-nos São João que é “homicida desde o princípio” e “pai da mentira” (cf. Jo 8,44). Se fosse tão feio como às vezes é pintado e/ou representado não teria tantos escravos.
A responsabilidade de seguir Jesus e servir o Reino é intransferível. Podemos também ser instrumentos do maligno: Há um conto da tradição dos índios Cherokees: “Dentro de mim há dois cachorros: um deles é cruel e mau; o outro é muito bom. Os dois estão sempre brigando. O que ganha a briga é aquele que eu alimento mais frequentemente”. Isto dá o que pensar. Aprendamos, pois, a exercitar a liberdade; afinal, “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1).
Nova Trento, 2 de fevereiro de 2015
Pe. Gottardo,sj